Num entardecer morno de um dia de sábado de verão do
mês de agosto de 1962, já boquinha-da-noite, um homem tangia o seu pequeno
comboio, composto de cerca de dez jumentos, arreados com cangalhas,
acondicionadas em surrões feitos de palha de carnaúba, uma variada carga de
mercadorias destinada aos pequenos comerciantes do povoado de Betânia, um
pequeno lugarejo que, naquele tempo, não abrigava mais do que duzentas almas,
situado no Município de Hidrolândia, aqui no Estado do Ceará.
Atrás da tropa e um
pouco distante dela, vinha o seu condutor, Gonçalo Rosa, primo legítimo de meu
pai, montado no seu burrinho que trotava ansioso, pois já pressentia os ares da
casa do seu dono que ficava a pouco menos de um quilômetro de distância. Provinham
eles, homem e animais, da cidade de Nova Russas, CE, que distava cerca de sete
léguas, aonde tinham ido dois dias antes participar da feira pública semanal
daquela comuna, o que aquele almocreve fazia habitualmente a cada quinze dias.
Na ida, haviam transportado dezenas de meios de sola curtida para serem
vendidos no comércio local. A sola é o couro curtido de bovino, caprino ou
ovino, próprio para a confecção de alpargatas, arreios, correias etc. O curtume
desses couros era a principal atividade de alguns habitantes daquele pequeno
Distrito, dentre eles, o tangedor do comboio.
Os jumentos seguiam
apressados, parecendo querer chegar logo ao seu destino para verem-se livres do
peso que carregavam e matar a fome e a sede no pasto de um cercado. O badalar
dos seus chocalhos quebrava o silêncio que naquela hora se impunha naquele
sertão seco e quente.
Antes de se chegar
ao povoado, vindo-se dos lados da Fazenda Pereiros, onde nasci, tinha-se,
inevitavelmente, de passar bem ao lado do pequeno cemitério da localidade,
pouco habitado, diga-se de passagem, que era protegido por uma cerca alta de
pau-a-pique.
Poucas coisas
costumam fazer medo ao sertanejo e uma delas são as “almas do outro mundo”.
Para ele, um cemitério está povoado delas. É por isso que ele costuma dizer que
homem nenhum passa perto de “um campo santo” sem sentir um pouco de medo,
aquele arrepio que sobe dos pés à cabeça, engrossando o corpo e causando uma
vontade maluca de sair correndo. Uns correm desabaladamente, outros não correm
porque temem ser perseguidos por uma alma numa corrida desigual. Não adianta
correr, pois o medo aumenta mais ainda! E tanto faz ser de dia como de noite. A
sensação é sempre a mesma. Digo isso por experiência própria, pois tive de
passar muitas vezes por aquele mesmo lugar, tanto à luz do dia quanto na
escuridão, a cavalo ou a pé. Que pavor! Nessa situação, o melhor a se fazer é
não espiar para dentro do cemitério e não olhar para trás depois de passar por
ele, no estilo “não te vi, não te conheço” e assobiar pra disfarçar o medo.
Gonçalo Rosa estava
tão habituado a fazer aquele trajeto que já nem deveria sentir tanto receio de
passar por ali, onde todos os sepultados eram da nossa família, amigos e
conhecidos.
Aquele dia, porém,
ia ser muito diferente para ele, em vista das circunstâncias que narraremos
adiante.
Por volta das duas
horas da tarde daquele mesmo sábado, Eduardo Lino, em sua casa na localidade de
Juá, após lavar os pés e o rosto com a água contida numa cuia grande, vestiu
sua roupa de mescla azul-marinho, calçou as alpergatas de sola grossa e disse
pra sua mulher que ia comprar os mantimentos e víveres para a semana seguinte:
rapadura, farinha, querosene, fumo etc. E lá se foi ele. Pulou o passador que
dava para um cercado próximo e ganhou as capoeiras em demanda do povoado de
Betânia, que ficava a mais de meia légua de distância e que ele percorria em
mais ou menos uma hora.
Eduardo, que Deus o
tenha, era o que costumamos chamar no sertão de “um pau-d’água”. Era um
homenzarrão de mais ou menos um metro e oitenta de altura, fala grossa embora
mansa, riso fácil, mas arengueiro quando se embebedava. Gostava de tomar
cachaça. Tanto em casa, onde mantinha sempre um litro de aguardente de reserva,
quanto nas bodegas da redondeza.
Ao chegar ao seu
destino, dirigiu-se à bodega do Mousinho, filho de Gonçalo Rosa, e tomou logo
um trago generoso num copo de fundo falso, da cachaça avermelhada, destilada na
Serra da Ibiapaba. Forneceu-se, fiado, dos mantimentos de que necessitava,
colocou-os num saco grande de pano e passou a perambular pelas poucas
mercearias, conversando com os conhecidos e tomando os seus goles. Decorrido
cerca de uma hora depois de sua chegada, já andava meio grogue, pendendo, a voz
empastada, falando alto. Beber com a barriga vazia é embriaguez na certa e
aquele pobre homem havia comido pela última vez no almoço frugal que havia
engolido por volta das dez e meia da manhã daquele dia, constituído de feijão
escoteiro, farinha e rapadura.
Lá pelas quatro e
meia da tarde, já muito troviscado, decidiu ir-se embora. Bebeu a derradeira
“bicada” e tomou o caminho de casa. Quando chegou ao cemitério, as pernas
bambas, já não suportando o peso do corpo, não titubeou. Como o portão estava
destrancado, não teve dúvida: entrou, cambaleante, sentou-se encostado à cerca
e ali ficou, meio adormecido, esperando a bebedeira passar.
O comboio de
jumentos já havia passado pelo cemitério, enquanto Gonçalo Rosa, pensativo, na
sela do seu burro, olhos fixos no chão da estrada, chegou ao primeiro canto da
cerca, à esquerda do viajante. O Sol já se pusera há algum tempo e fazia aquele
lusco-fusco que impede de ver nitidamente. Quando alcançou o meio do lance do
cercado, ouviu uma voz grave e profunda, vinda de dentro do cemitério, dizer:
“Já vem, né cumpade Gonçal”? Surpreso e assombrado com o que ouviu, Gonçalo
ergueu a cabeça subitamente, olhou pra trás, olhou pra mataria à direita e
depois pra dentro do cemitério. Como não viu o dono da voz que falara o seu
nome, não pensou duas vezes: esporeou o burrinho com toda a força dos
calcanhares e o animal arrancou, numa carreira desembestada, em demanda do
povoado. Passou pelo seu comboio de jumentos e só foi parar na calçada da
bodega do seu filho Mousinho que àquela hora se achava apinhada de fregueses.
Desceu do burro, pálido e quase sem voz, entrou no estabelecimento e foi direto
ao balcão. O filho, vendo o estado do pai, indagou-lhe o que tinha havido. Como
ele hesitasse em responder, o bodegueiro deu-lhe um trago de cachaça que foi
engolido de uma só vez. Foi então que pôde responder, já um tanto mais
serenado, dizendo apenas: “Uma voz, uma alma, no cemitério...”
Gonçalo era um
homem direito e todos acreditavam nele, por isso, a notícia correu e se
espalhou pelo povoado inteiro: “O ‘Gonçal’ Rosa viu uma alma no cemitério”! Foi
o bastante pra deixar todo o mundo com medo. Ninguém, naquela noite, se
aventuraria a ir para os lados do campo dos mortos.
Dia seguinte,
domingo pela manhã, retorna Eduardo à povoação e, na dita bodega do Mousinho,
toma conhecimento da novidade da tarde anterior: a alma ouvida pelo Gonçalo
Rosa. Ao saber do ocorrido, ele cai na gargalhada, gesto que intriga a todos.
Foi então que ele narrou a versão do fato. Não era alma, coisíssima nenhuma,
era ele próprio que tinha caído, bêbado, dentro do cemitério. Despertara ao
ouvir o chocalhar da jumenteira e chamara o nome do amigo que passava. Um misto
de alívio e decepção tomou conta dos moradores. Alívio, porque arrefecia o medo
que aquela “alma” estava causando à população, e decepção pelo ridículo risível
pelo qual passou um dos homens mais acreditados e probos do lugar Betânia.
Casos como o
narrado acima não são singulares. Muitos têm tomado ocorrências naturais por
sobrenaturais, distorcendo, assim, a veracidade dos sucessos.
No início do
Capítulo IX – Dos Lugares Assombrados – de “O Livro dos Médiuns”, se expressa
Allan Kardec desta maneira: “As manifestações espontâneas que se produziram em
todos os tempos, e a persistência de alguns Espíritos em darem sinais
ostensivos de sua presença em determinadas localidades, são a origem da crença
em lugares assombrados”. Kardec, no mesmo capítulo, formula diversas questões
aos Espíritos sobre o assunto. Na questão ‘5’, por exemplo, ele indaga: “As
crenças populares, em geral, têm um fundo de verdade; qual pode ser a origem da
crença nos lugares assombrados?” Resposta: “O fundo de verdade é a manifestação
dos Espíritos, na qual o homem acreditou em todos os tempos, instintivamente;
mas, como já disse, o aspecto dos lugares lúgubres toca a sua imaginação e ele
coloca aí naturalmente os seres que considera como sobrenaturais. Essa crença
supersticiosa é mantida pelas narrativas dos poetas e os contos fantásticos com
os quais embalaram sua infância”. Na questão ‘8’, ele pergunta: “Os Espíritos
voltam de preferência aos túmulos onde repousam seus corpos?” Replicam os
Espíritos: “O corpo não é senão uma veste; eles não se ligam mais ao envoltório
que os fez sofrer do que os prisioneiros às suas cadeias. A lembrança das
pessoas que lhes são caras é a única coisa à qual dão valor”.
É a nossa arraigada
crença de que as almas permanecem indefinidamente junto aos seus despojos
carnais nos cemitérios a causa da produção de fatos como este que acabamos de
narrar.