Uma das grandes conquistas da Humanidade foi a laicização do
Direito que, liberto dos grilhões religiosos, pode florescer como uma
construção humana. Portanto, o presente artigo, ao defender a existência de um
Direito laico e, ao mesmo tempo, tecer algumas relações entre Direito e
Espiritismo, não se pretende doutrinário, e sim crítico e aberto. Também não
tem intenção de proselitismo.
O principal ponto em comum
entre o Direito e o Espiritismo é o senso de Justiça, que, enquanto para
alguns, é produto cultural, para outros, é inato ao ser humano. Não vamos
adentrar ao mérito dessa questão, mesmo porque, não há provas de uma ou de
outra coisa, e sim meras especulações filosóficas.
Para o Espiritismo, a ideia de
Justiça é mais ampla do que para o Direito, pois abrange a possibilidade de
sucessivas encarnações para a sua concretização. Já o Direito, por seu turno,
viabiliza a Justiça atendo-se à existência de apenas uma vida, que é a vida
presente. Ora, essa questão remonta às provas científicas na encarnação, que
não são aceitas unanimemente.
O maior expoente da ciência no
estudo científico das reencarnações é Ian Stevenson, da Universidade de
Virgínia, nos Estados Unidos, que conseguiu comprovar centenas de casos de
reencarnação em diversos países ocidentais e orientais. Todavia, outras
centenas de casos estudados ficaram sem comprovação. Assim, a reencarnação, sob
o ponto de vista científico, continua sendo uma possibilidade aceita por alguns
e refutada por outros, permanecendo mais como uma questão de fé do que de
ciência. Cumpre observar, todavia, que não apenas o
Espiritismo é
reencarnacionista, mas também uma variada gama de outras religiões,
principalmente orientais.
Pois bem. Tomemos como possível a existência de sucessivas
reencarnações da alma, a fim de que possamos analisar a ideia espírita de
Justiça. Allan Kardec, em “O Livro dos Espíritos”, questão 8751, pergunta aos
espíritos como se deve definir a Justiça, ao que respondem: “A Justiça consiste
no respeito aos direitos de cada um”.
Ora, essa definição não está
inconforme com o Direito posto, ao longo dos séculos da história da Humanidade.
Continuando, pergunta Kardec o que determina esses direitos e os espíritos
respondem que “são determinados por duas coisas: a lei humana e a lei natural.
Como os homens fizeram leis
apropriadas aos seus costumes e ao seu caráter, essas leis podem variar com o
progresso (...). O direito dos homens, portanto, nem sempre é conforme a
Justiça. Só regula algumas relações sociais, enquanto na vida privada há uma
infinidade de atos que são de competência exclusiva do tribunal da
consciência”.2 Para Allan Kardec, a verdadeira lei de Justiça está associada ao
amor e à caridade, razão porque acrescenta que “o critério da verdadeira
Justiça é de fato o de se querer para os outros aquilo que se quer para si
mesmo, e não de querer pra si o que se deseja para os outros, o que não é a
mesma coisa”3.
Algumas interpretações mais
conservadoras da Doutrina Espírita entendem que se deve suportar as dores do
mundo como obra da Justiça, decorrentes de atos faltosos da vida pregressa.
Isso levava a um tipo de resignação descabida em nossos dias, quando a evolução
da Humanidade nos ensina a lutar pelos nossos direitos. Assim, as correntes
mais recentes da hermenêutica espírita põem a ênfase sobre o livre-arbítrio do
homem, para reivindicar o que lhe for de direito e assim ir tecendo a sua
história, com liberdade de decisão. O mesmo se aplica aos operadores do Direito,
que não devem se resignar diante das injustiças, mas sim trabalhar para
construir o que for justo, em conformidade com a época e com o lugar.
Todavia, dentro do conceito de
Justiça, a Doutrina Espírita admite a existência de provação e expiação.
Francisco Cândido Xavier, na obra “O Consolador”, pelo espírito Emmanuel, diz
que “a provação é a luta que ensina ao discípulo rebelde e preguiçoso a estrada
do trabalho e da edificação espiritual. A expiação é a pena imposta ao
malfeitor que comete um crime”4. Perguntado sobre a inflexibilidade da lei de
prova e expiação, o espírito Emmanuel responde que “a inflexibilidade e a
dureza não existem para a misericórdia divina, que, conforme a conduta do
espírito encarnado, pode dispensar na lei, em benefício do homem, quando a sua
existência já demonstre certas expressões de amor(...)”5. Assim, vemos que a
ideia de Justiça espírita abrange leis mais amplas do que as dos homens e a
extrapola, incluindo a possibilidade de reencarnação, para a consecução dessa
mesma ideia de Justiça.
A relação entre Direito e
Espiritismo, no Brasil, é patente. Uma rápida busca desses vocábulos na
internet nos trará milhões de resultados. Com efeito, o Espiritismo
desenvolveu-se no Brasil mais do que em qualquer outro país do mundo, mormente
entre os anos 30 e 50 do século passado.
Várias vezes os tribunais
brasileiros aceitaram o Espiritismo6 em questões inclusive controversas, como,
por exemplo, a admissão de psicografias como meio de prova em Juízo. Sobre esse
assunto, assevera Alaíde Barbosa dos Santos Filha, no volume 1 da revista
eletrônica ‘Fonte do Direito”7, que as psicografias podem ser aceitas como meio
de prova judicial, desde que se faça um exame grafotécnico das mesmas, para
comprovar se a caligrafia do suposto espírito manifestante coincide com a da
referida pessoa, em vida. Porém, muitas vezes nas psicografias a caligrafia é
mesmo a do médium, e não do suposto espírito desencarnado. Por essa razão, quer
nos parecer que as psicografias não constituem um meio de prova admissível judicialmente,
inclusive porque não se pode provar cientificamente a existência de espíritos,
tampouco a sua manifestação entre nós. Essa é uma questão de fé, para a qual a
ciência não apresenta respostas ou comprovação. Contudo, não obstante as
controvérsias, podemos concluir que há elementos teóricos suficientes para a
formulação de uma Teoria Espírita da Justiça, assim como também há, em outras
religiões, elementos dos quais se pode haurir teorias que versem sobre a
Justiça e sobre o Direito.
1 KARDEC, A . O livro dos
espíritos. (Trad. de Herculano Pires), 42a ed., São Paulo: LAKE, 1982, p. 351.
Maria Francisca Carneiro
Pós-doutora em Filosofia, Doutora em Direito. mfrancis@netpar.com.br