domingo, 23 de novembro de 2014

O SONHO DE RAFAELA

"Disse então Jesus estas palavras: – Graças te rendo, meu Pai, Senhor do Céu e da Terra, por haveres ocultado estas coisas aos doutos e aos prudentes, e por as teres revelado aos pequeninos." (MATEUS, 11:25.)

Em certo dia, durante os deveres assumidos com o exercício do aprendizado que me fora indispensável no mundo invisível, para desenvolvimento do meu progresso pessoal, necessitei visitar a Terra, onde sempre me fora dado observar tantas lágrimas crestando o coração do meu próximo. Desci em vôo lento, ao acaso... e planei, atraído, de certo, por afinidades especiais, sobre uma região pobre do Piemonte, nas encostas nevadas dos Apeninos. (1)
Era uma aldeia de pobres camponeses, que tiravam das entranhas do solo o sustento para os seus semelhantes, mais para estes do que para si próprios, pois esses meus irmãos, almas heróicas, geradas, como eu, da mesma Luz, eram resignados na sua pobreza e se conformavam com o mínimo que lhes era indispensável.

Um travo de tristeza anuviou a satisfação de que nos últimos tempos minhalma se alcandorava, à vista daquela aldeia onde os problemas se multiplicavam, sem soluções compensadoras. Lembrei-me então dos dias melancólicos da minha existência terrena, quando, palmilhando os gelos de minha terra natal, eu peregrinava por aqui, por ali e acolá à procura das dores alheias para que Deus, suavizando-as por meu intermédio, também a mim, permitisse a misericórdia da suavização das minhas próprias dores, que não foram poucas.
Entrei, agora, de palhoça em palhoça, visitei os camponeses, os operários, os cavouqueiros, os pescadores. E a desolação crescia em minha alma, porque verifiquei que o homem, tal como nos meus velhos tempos, antes de mais nada, conservava-se sofredor, e assim se conservava por ignorar o próprio destino imortal.
Mas... mais além
, à beira de uma palhoça com vistas para a cordilheira, um grupo de mulheres conversava amistosamente. À frente, a sombra de um pinheiro tingia de penumbras o alpendre tosco da entrada, enfeitado de jasmins e trepadeiras, ao passo que tílias floridas bordavam de tonalidades suaves o terreno cultivado, a par de videiras tenras que tentavam frutificar.
Que diriam entre si aquelas pobres camponesas?...
Seu mundo era tão restrito, tão modestos os seus ideais, que não passavam do desejo da boa saúde dos maridos e do crescimento dos filhos, que bem cedo deveriam marchar para a lavoura, com o pai.

Aproximei-me :
Elas eram ruivas e brancas, de faces rosadas e frescas, como legítimas italianas, volumosas em suas saias berrantes e fartas, com alvos aventais e toucas típicas, que as tornavam graciosas. Sim, que diriam?...
Detive-me a ouvi-las, como outrora, durante meus passeios solitários, ao encontrar um e outro "mujik" (2), que vinham solicitar a ajuda que nunca lhes pude plenamente conceder. E uma lágrima deslizou de minha alma, a essa melancólica evocação.

Eis o que se passava:
– Sim, Senhora Rafaela, conta à nossa Gertrudes o que te sucedeu durante esta noite... para ver se ela deixará de também chorar a morte do seu pequerrucho, que lá vai dois anos se foi para o bom Deus, sem que ela, a mãe, o esqueça... Conta-lhe...
– Sim, Rafaela, não te faças rogada... Conta-nos novamente o teu lindo sonho...
E Rafaela contou às vizinhas, pela décima vez, naquela manhã de primavera, o sonho que tivera, tendo agora, porém, um ouvinte a mais, invisível, do qual nenhuma delas se apercebia:
– Lembra-te, Gertrudes, da minha Adda?... Morreu há seis meses, quando justamente completaria os três anos de idade... e lhe iam sair os últimos queixais... Era tão viva e tão levada, a minha filha...

– Pois sim, lembro-me!... Pois não fui eu que a amamentei por ti, naqueles primeiros dias, quando a febre do leite te fazia variar?... Era tão linda como o meu Giovanino, que também se foi... e sua irmã de leite...
– Lembra-te do que tenho chorado e lamentado durante seis meses, sem dar acordo de mim mesma, inconsolável pela ausência de minha Adda, sem ânimo para o campo, sem comer, sem dormir, já sem crença em Deus, que me levou?...
– Como não havia de me lembrar, ó Rafaela!... Então não sei que assim mesmo tens feito?... Pois assim mesmo não te tenho visto, há seis meses?...
– Pois, Gertrudes, esta noite sonhei – prosseguiu Rafaela –, sonhei que fui convidada para uma festa onde somente crianças deveriam divertir-se. Parece que a tal festa se realizaria pelos arredores do Céu, mais ou menos...
Então, fui.
Era um lugar florido e bonito, e as crianças ali dançavam e cantavam, alegrezinhas, entoando hinos, enquanto se arremessavam punhados de pétalas de rosas brilhantes como estrelas... Traziam coroas de flores luminosas às cabecinhas louras e asas luzentes como devem ser as dos anjos que cortejam a Santa Mãe de Nosso Senhor Menino...

Embevecida, eu as admirava, assistindo à festa com as mãos entrançadas, como se contemplasse anjos do próprio Paraíso...
Mas, de súbito, que pensas que eu vejo?...

Adda! A minha Addazinha!... Mas... triste, contundida e chorosa, asas molhadas, sem bastante brilho para também participar do folguedo dos anjos... porque encharcadas também as suas vestes, e como comparecendo ali clandestinamente, sem se poder apresentar como seria devido numa festa de tal importância.
– Que significa isto, minha filha? – perguntei-lhe eu, no cúmulo da estupefação. – Tu, tão triste, quando eras alegrezinha, assim molhada e transida de frio, como se te houveras afogado nas torrentes do nosso rio Pó... (3) Por que não te divertes com os outros anjos, tu que eras o anjinho do meu coração, a doce bênção de Nosso Pai em meu lar?...
– Não poderia, mãezinha!... – respondeu em lágrimas, que me amarguraram.
– E por que não poderias, filhinha?... Porventura o bom Deus não é complacente contigo?...
– O bom Deus é complacente comigo, sim, mãezinha... Mas é que, na Eternidade, existem leis disciplinares irrevogáveis...

– Francamente, não te entendo, minha filha! Se és um anjo... Não tiveste sequer tempo de pecar... Porque leis severas contigo?...
– Não vês, mamãe, como me encontro?... assim molhada, com minhas asas pesadas, minhas roupagens sombrias, desguarnecidas de fulgurâncias, como não convém aos anjos trazê-las?...

– Mas... por que estás assim, filhinha?... Que te aconteceu?... Dize tudo a tua mãezinha... Quem sabe poderei ajudar-te em alguma coisa?...
– Pois justamente és tu a culpada de tudo, mãezinha... Tanto choras e blasfemas contra Deus, por minha causa, que me prendes ao teu lado, pela compaixão que me inspiras com tua mágoa demasiada e o teu desespero... Tuas lágrimas molham minhas asas, sombreiam minhas vestes, que devem ser de luz... E neste estado não me será possível compartilhar das alegrias das outras crianças que habitam felizes moradas dos Céus, nem alçar vôos pelo Infinito, onde deverão residir aqueles que deixaram o mundo, para se tornarem ditosos...
Promete que não mais hás de chorar e lamentar assim e serei feliz como o são estes que aqui vês, porque poderei seguir, sem pesares, para o seio dAquele que criou leis que tu desconheces, mas que mesmo assim deverás acatar porque são justas e muito sábias... E um dia, mãezinha, aqui mesmo virás ter... para continuarmos a felicidade momentaneamente interrompida...

– Ora, minha filha querida! – respondi-lhe eu, sorridente e comovida – Deus seja louvado! Prometo que me resignarei a essas leis, para não impedir teus vôos para o Céu com as minhas revoltas... Orarei ao bom Deus, isso sim! para que sejas feliz, podendo volitar em torno da Mãe Santíssima, como os demais anjos... e para que, quando possível, venhas até mim, tal como neste momento, a fim de me esclareceres e orientares sobre as coisas de Deus, que desconheço...
Quando Rafaela cessou de falar tinha os olhos secos. Mas as outras mulheres choravam, enquanto eu, invisível a todas elas, monologava com a alma enternecida:
– Oh, Deus dos simples e dos pequeninos! Eu louvo a tua misericórdia, que concede aos pobres e ignorantes do mundo revelações singelas, mas sublimes como esta, para que suas amarguras sejam acalentadas, revelações que, no entanto, encerram profunda essência filosófico-transcendental!...

Na Terra existe uma Ciência, revelada pelo Céu aos homens, que traduz a essência desta história tão repetida entre todas as mães que viram morrer os filhos pequeninos, Ciência capaz de explicá-la, desdobrando-a em ensinamentos de alta significação espiritual. Tu conheces tal Ciência, meu amigo! É a Doutrina que professas, a sacrossanta revelação daqueles que habitam o mundo dos Espíritos. Difunde-a, pois, com todas as forças do teu coração e do teu entendimento, para consolo do teu próximo, que precisa dela para se tornar menos desgraçado.

Leão Tolstoi (espírito), psicografia de Yvonne A. Pereira. Livro: Ressurreição e Vida

(1) Piemonte – Região da Itália. Situa-se entre os Alpes, o rio Tessino e os Apeninos. Capital: Turim. Apeninos – Cordilheira de montes calcáreos, que se estende ao longo da península Itálica. Altitude máxima, 2.921m. Grandes jazidas de mármore. (2) Mujik – Camponês. (3) Rio da Itália. Atravessa o Piemonte e a Lombardia.

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