Acima
de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre a
multidão de pecados.” (1 Pedro 4:8.)
Essa interessante afirmação do
apóstolo Pedro sempre nos levará a profundas reflexões em torno da justiça e da
misericórdia divina.
Selecionamos para este mês uma lenda hindu
registrada pelo admirável escritor e matemático carioca Júlio César de Mello e
Souza, mais conhecido pelo seu pseudônimo Malba Tahan, que trata do assunto no
seu livro “Lendas do Deserto” (estória também encontrada na coletânea: “Melhores
Contos”, de Malba Tahan).
Conheçamos a lenda:
Kandata, o facínora,
tendo expirado sem mostras de arrependimento, foi pela imutável Justiça atirada
à região sombria dos eternos suplícios. Durante muitos séculos, suportou
indiferentemente os tormentos do inferno. Um dia, porém, seu coração empedernido
foi tocado por tênue raio de luz do arrependimento. Ajoelhou-se e implorou, em
prece fervorosa, a proteção e misericórdia do Senhor da Compaixão.
No
mesmo instante surgiu-lhe a figura radiosa de um anjo, que lhe disse:
–
O Senhor da Compaixão ouviu a prece humilde que acabas de proferir. E aqui estou
para salvar-te dos castigos tenebrosos do inferno. Ó Kandata, no decorrer das
tuas vidas anteriores, houve dia em que tivesses assistido a uma boa ação tua,
por menor que fosse? Ela te ajudaria, agora, livrando-te dos tormentos que, sem
tréguas, te afligirão. Mas nunca esperes ver cessados os sofrimentos atuais,
consequência do teu passado, se conservares ainda sentimentos de egoísmo e se
tua alma guardar a impureza da vaidade, da luxúria e da inveja! Diz-me, ó
Kandata, se queres sair daqui, qual foi, por acaso, o ato de bondade que em vida
praticaste.
– Pelo Deus da Misericórdia! – exclamou Kandata, cheio de
profunda humildade e tristeza. – Jamais pratiquei, em minha vida passada,
qualquer ato digno ou louvável. A minha existência foi um rosário interminável
de crimes e infâmias de toda espécie!
– Kandata! – insistiu o anjo. –
Procura rememorar miudamente todas as ações do teu negro passado! Basta um ato
verdadeiramente bom de tua parte, um só, para que obtenhas o perdão de Deus!
Alguma vez socorreste, com a esmola, o desprotegido da sorte?
– Nunca –
murmurou Kandata, com voz sucumbida.
– Algum dia – prosseguiu o anjo –
tiveste uma palavra de consolo ou de bondade para os aflitos e
desesperados?
– Nunca!
– Não te moveram, uma vez, à piedade, os
enfermos, nem dispensastes alguma proteção aos fracos e infelizes?
–
Nunca! – soluçava Kandata, com o desespero dos arrependidos.
– E para com
os animais, nossos irmãos inferiores? – insistiu o anjo. – Trataste com crueza,
impiedosamente, todos os seres fracos do mundo?
– Deus seja louvado! –
exclamou Kandata. – Lembro-me de que, certa vez, ao atravessar um bosque, vi uma
pequenina aranha que procurava esconder-se sob a relva. “Não pisarei nesta pobre
aranha”, pensei, “porque é fraca e inofensiva”. Desviei o passo, a fim de poupar
a vida ao mísero animalzinho. Teria sido esta uma ação agradável aos olhos do
Criador?
– Feliz que és, Kandata – respondeu o anjo. – Esse pequeno ato
de bondade que acabas de recordar é, sem dúvida, suficiente para salvar-te do
inferno; e é a própria aranha do bosque que, em breve, te proporcionará – pela
vontade divina – o meio único de salvação. Da altura infinita do céu a
aranhazinha vai lançar-te um fio; por ele poderás subir até ao seio do
Onipotente!
E, isto dizendo, o anjo desapareceu. Quase no mesmo instante,
viu Kandata, com grande assombro, que um fio de aranha descia das alturas
divinas até o fundo do abismo negro que o torturava. Aquele fio, de enganadora
fraqueza, representava para ele a salvação, a tão sonhada ventura! Estaria, para
sempre, livre dos suplícios indizíveis do inferno!
Sem hesitar, Kandata
agarrou-se a ele e começou a subir. Sentiu, desde logo, que o fio – pela bondade
do Onipotente – era forte e lhe sustentava perfeitamente o peso do corpo, que
balouçava no espaço. De repente, porém, em meio da escalada, lembrou-se o
bandido de olhar para baixo e notou que os seu companheiros de infortúnio
procuravam, também, à porfia, salvar-se da região dos tormentos, subindo pelo
mesmo fio.
Com certeza, não poderá tão delgado sustentáculo suportar o
peso dessa gente toda! – Pensou Kandata apavorado. E, instigado pelo terrível
egoísmo, desejando apenas a própria liberdade – sem lhe importar a alheia
desgraça –, gritou para os infelizes que já se agarravam, penca infernal, ao fio
salvador:
– Larguem, miseráveis! Larguem, que este fio é meu, só
meu!
No mesmo instante, partia-se o fio da aranha e Kandata era para
sempre restituído às profundezas em que tanto tempo sofrera tão duros castigos!
O fio salvador, forte bastante para levar ao céu milhares de criaturas
arrependidas de seus crimes, rompera-se ao sofrer o peso do egoísmo que a
maldade insinuara num coração.
José Antonio Vieira de Paula